A nocividade legal do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 664.335 demonstra descaso pela ciência e apego a ideologia paternalista que norteia as decisões trabalhistas.
O Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 664.335 que diz:
“…exposição do trabalhador a ruído acima dos limites legais de tolerância, a declaração do empregador, no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), da eficácia do Equipamento de Proteção Individual (EPI), não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria.“.
é um bom exemplo disso. Ninguém duvida que não temos mais inquiridores e fomentadores de conhecimento, mas apenas repetidores de informações. A escassez de cérebros é patente, fruto de escolas que apenas repassam, mas não geram conhecimentos.
Apenas exposições a níveis de ruído acima de 115/120 dB é que podem iniciar uma descaracterização do protetor auditivo em função da propagação do ruído também por via óssea (principalmente do crânio). Isso porque a parcela de ruído transmitida por via óssea e tecidos é cerca de 40 a 50 dB menor que o ruído transmitido por via aérea, sendo praticamente desprezível em ambientes em que o nível de ruído seja inferior a 115/120 dB. Anular completamente a eficácia do EPI alegando propagação do ruído também por via óssea, sem estabelecer um limite de ruído aceitável, foi mais um exemplo de analfabetismo científico judiciário. Não consigo entender tamanha defasagem entre a ciência e a ARE 664335. Mesmo com um especialista da área explicando esse fenômeno acústico ocupacional ainda conseguiram errar na decisão?
O entendimento das contradições entre a lei e a realidade pode ser resumido da seguinte forma:
Os aspectos acima demostram como a realidade pode influenciar a interpretação e a aplicação das leis. Isso leva a discussões sobre a justiça e a necessidade de revisão das normas existentes.
TRANSMISSÃO DO RUÍDO POR VIA ÓSSEA E TECIDOS
É sabido que o ruído ocupacional pode atingir o ouvido interno ou cóclea através dos ossos do corpo humano (principalmente da caixa craniana). Isso explica o barulho que escutamos quando mastigamos ou coçamos a cabeça. A transmissão do ruído por via óssea/tecidos acorre quando as ondas sonoras chegam até os ossos da cabeça. As ondas sonoras causam vibrações que são conduzidas pelos ossos/tecidos até os ossículos dos ouvidos médio e diretamente até o ouvido interno. Essas vibrações por sua vez perturbam os líquidos internos e provocam a sensação da audição. Sem dúvida que a audição por via aérea é bem mais sensível do que por via óssea. Eliminando a audição por via aérea restaria uma audição com nível sonoro reduzido em aproximadamente 60 dB (uma redução de 106 ou 1.000.000 de vezes menor que o ruído ambiente). Isso porque o ruído causa vibração diferente para as diversas frequências que incidem nos ossos do crânio:
Frequências em torno de 250 Hz: causa vibração no crânio como um corpo rígido de bloco único;
Frequências em torno de 800 Hz: causa vibração na caixa craniana com deformação na direção anterior posterior;
Frequências em torno de 1.500 Hz: causa vibração na caixa craniana com deformação nas laterais.
A vibração que chega ao ouvido através da mandíbula (ligada diretamente ao osso temporal) também é um fenômeno acústico importante no estudo da propagação do ruído por vias óssea e tecidos.
A transmissão do ruído por via óssea e tecidos é fato, mas há de se considerar o impacto dessa propagação na saúde do trabalhador. Estudos técnicos científicos comprovam que para ocorrer esse tipo de transmissão é necessário que o nível de exposição ao ruído seja de no mínimo 115 dB, dentre outros fatores (ver mais referências no final deste artigo). Estudos também comprovam que o início da transmissão via óssea e tecidos em níveis desprezíveis ocorre a partir de exposições acima de 120 dB. A transmissão do ruído por meio dos ossos e tecidos somente possui importância se o protetor auditivo utilizado possuir atenuação superior aos valores de cada frequência em relação a atenuação natural do organismo (40 a 50 dB). E não existe protetor auditivo que ofereça tamanha atenuação. Não é possível converter dB em dB(A) diretamente, mas fazendo uma aproximação podemos subtrair 10 dB(A) do valor em dB. (*)Desse modo os 115 dB necessários para transmissão do ruído por via óssea e tecidos resultam em 105 dB(A). Sendo esse o Nível de Ação e inicio da nocividade que deveria ser considerado para esse tipo de exposição. A decisão judicial jamais deveria ser baseada na analogia com as exposições por via aérea. Analisando o perfil de exposição da maioria dos trabalhadores constatamos que dificilmente são encontrados níveis de ruído ocupacional dessa magnitude. Salientando que a transmissão do ruído por via óssea e tecidos considerada é inicialmente produzida e transmitida pela fonte por via aérea. Apenas no organismo humano é que uma parcela desse ruído é transmitida por via óssea e tecidos em forma de vibrações em meio orgânico (ossos, tecidos, líquidos etc). Na maioria dos casos essas exposições devem ser ignoradas porque a média de atenuação natural oferecida pelos ossos e tecidos durante a transmissão do ruído ao sistema auditivo é de 45 dB a 55 dB. Veja que nesse caso, como a transmissão não é por via aérea, o ruído não passa pelo sistema de compensação “A”-Slow [dB(A)], não havendo esse tipo de redução da audibilidade natural em função das frequências, mas de outro mecanismo de atenuação específico dos ossos e tecidos. A transmissão pelo ar é bem mais eficiente do que através do organismo humano.
TRANSMISSÃO DO RUÍDO POR VIA AÉREA
dB é uma unidade logarítmica que mede a razão entre duas potências ou intensidades. dB(A) é uma escala ponderada que simula a forma como o ouvido humano percebe o som e que corresponde ao limiar auditivo do ouvido humano. O dB é usado para medir o som, mas os seres humanos não ouvem todas as frequências igualmente. Os níveis de som na extremidade de baixa frequência do espectro são reduzidos. Isso porque o ouvido humano é menos sensível em baixas frequências do que em altas frequências. Medições de ruído em dB(A) são leituras de escala de dB (decibéis) ajustadas para aproximar da sensibilidade variável do ouvido humano a diferentes frequências de som.
A curva de compensação que melhor representa a resposta da audição humana em função da frequência do ruído é a curva de compensação “A”:
Fonte: https://www.engineeringtoolbox.com/decibel-d_59.html
Pelo gráfico acima percebemos que apenas na frequência de 1.000 Hz o som é percebido pelo ouvido humano como se não houvesse filtro. Para as demais frequências, principalmente as baixas, a atenuação natural é considerável. Apesar da faixa audível pelo ouvido humano ser extensa, indo de aproximadamente 20 Hz a 20 kHz, o ouvido humano é mais sensível ao som na faixa de frequência de 1 a 4 kHz, que é a faixa predominante da frequência da voz humana.
Comparando os filtros de dB A, B e C, temos:
A curva de compensação “A” oferece as atenuações de até -39,4 dB(A) (frequência de 31,25 Hz) e -1,1 dB(A) (frequência de 8kHz) Hz. São as maiores atenuações em função das frequências em todas as curvas consideradas acima. Isso mesmo. Não somente por via óssea e tecidos, mas também por via aérea também há atenuações do ruído em função da frequência.
Para converter valores de dB (decibéis) para dB(A) (decibéis ponderados A) é preciso aplicar uma curva de ponderação A, que reflete a resposta do ouvido humano a diferentes frequências. Isso significa que nem todos os dB em diferentes frequências são percebidos da mesma forma.
Para converter dB para dB(A), é necessário:
-Medir o nível de ruído em dB das principais frequências audíveis, com uso de equipamentos específicos;
-Aplicar a curva de ponderação A disponível em tabelas ou em softwares especializados;
-Calcular a média ponderada em dB(A).
Entendemos que dB (decibel) é uma unidade genérica de medição de nível de pressão sonora e dB(A) (decibel ponderado A) é uma escala de decibéis que leva em consideração a resposta do ouvido humano às diferentes frequências.
Para as principais frequências temos os seguintes valores para correção de dB para dB(A):
125 Hz: -16
250 Hz: -9
500 Hz: -3
1000 Hz: não muda (faixa de referência)
2000 Hz: +1
4000 Hz: +1
Calculando:
100 dB na frequência de 125 Hz = 100 dB – 16 = 84 dB(A)
100 dB na frequência de 250 Hz = 100 dB – 9 = 91 dB(A)
100 dB na frequência de 500 Hz = 100 dB – 3 = 97 dB(A)
100 dB na frequência de 1.000 Hz = 100 dB = 100 dB(A), faixa de referência
100 dB na frequência de 2.000 Hz = 100 dB +1 = 101 dB(A)
100 dB na frequência de 4.000 Hz: 100 dB +1 = 101 dB(A)
No entanto, o mecanismo auditivo responsável por essa atenuação natural não é suficiente para proteger o trabalhador dos danos causados pelo ruído. Por isso que o ruído ocupacional é medido em dB(A). E estando acima de 85 dB(A) durante 8 horas/dia há danos auditivos em potencial. Lembrando que essa atenuação em dB(A) natural ocorre por via aérea. Por isso há necessidade de protetores auditivos. Ocorrem atenuações naturais também por via óssea e tecidos, que são ainda maiores. As atenuações que podem ser atingidas com os protetores auditivos comercializados mal chegam a 29 dB, considerando toda a gestão do EPI (EPI adequado e com uso correto, ininterrupto, contínuo etc). Não chegam nem perto dos 45 dB atenuados quando a transmissão ocorre por via óssea e tecidos. Daí a insignificância de 99, 99% desse tipo de exposição.
CONCLUINDO SOBRE A TRANSMISSÃO DO RUÍDO POR VIA ÓSSEA E TECIDOS
A transmissão do ruído com uso de protetor auditivo pode ocorrer por meio do vazamento do ruído através do equipamento, vibração do equipamento, propagação através da estrutura do equipamento e transmissão por via óssea e tecidos. No entanto, em virtude da transmissão via ossos e tecidos ser desprezível, resta apenas a transmissão por via aérea. E para essa via de transmissão o protetor auricular pode ser considerado eficaz e o trabalhador protegido. Talvez a simples explicação de que “a nocividade das exposições ao ruído ocupacional por via óssea e tecidos tem inicio apenas a partir de 105 dB(A) para todas as frequências, limite esse que deve ser definido para início das ações preventivas das exposições por essa via de transmissão”, fosse suficiente para evitar tamanha aberração jurídica. Veja que o limite de (*)105 dB(A) pode ser definido como o inicio da nocividade quando transmitido por via óssea e tecidos. Sendo 40 dB a atenuação natural oferecida por via óssea e tecidos e 120 dB dB o limite da nocividade, temos que: 120 dB – 40 dB = 80 dB. Por aproximação podemos dizer que esse nível equivale a 70 dB(A). Em analogia com o Nível de Ação Preventiva e considerando um fator de troca “5”, podemos ainda definir 105 dB(A) como o Nível de Ação Preventiva e 110 dB(A) como Limite de Tolerância para exposições ao ruído por via óssea e tecidos. Limites esses garantidores da segurança dos trabalhadores expostos sem o trauma do ARE 664.335.
Concluímos que a exposição do trabalhador ao ruído ocupacional ocorre por via aérea, ossos e tecidos. Concluímos também que a exposição por via óssea e tecidos não é significativa para a maioria das exposições reais e que o protetor auricular pode ser eficaz na proteção do trabalhador para as exposições por via aérea. Frente ao exposto, percebemos que o ARE 664.335 lesa as organizações e promove injustiça e insegurança jurídica. A sensação é de desvalorização dos profissionais de SST e desacreditação da Segurança Ocupacional como ciência. E rever esse (des)entendimento é uma questão de justiça social.
Mais referencias sobre “Estudos técnicos científicos comprovam que para ocorrer esse tipo de transmissão é necessário que o nível de exposição ao ruído seja de no mínimo 115 dB, dentre outros fatores”:
Revista-ABHO-Edicao-74_WEB.pdf
PROTETORES AUDITIVOS Prof. Samir N.Y. Gerges … – LARI – UFSC
Revista-ABHO-Edicao-74_WEB.pdf
relatorio-tecnico-eficacia-do-protetor-auditivo.pdf
https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/12194
Microsoft Word – Dissertação tatiana cili 2008.doc
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