Propositalmente ou por ignorância, advogados e peritos adoram fazer eisegeses em termos normativos, principalmente quando aplicadas a perícias de insalubridade e periculosidade.

Eisegese vem do grego “eis” que significa “em” ou “dentro” e “exegese” que significa “interpretar”. Eisegese significa interpretar um texto colocando algo dentro dele, conforme o interesse do eisegeta. Diferente de exegese que é interpretar o texto extraindo do mesmo o seu real significado. Exegese é uma análise, interpretação ou explicação detalhada e cuidadosa de uma obra, um texto, uma palavra ou expressão. Etimologicamente, este termo se originou a partir do grego exégésis, que significa “interpretação”, “tradução” ou “levar para fora (expor) os fatos”. O uso de eisegese denota ignorância ou desonestidade, óbvio. Em se tratando de perícia, onde há interesses envolvidos, certamente denota desonestidade intelectual. 

Pelo que pude constatar em todos os tempos de atuação como Assistente Técnico Pericial, parece que fazer a devida exegese não é o forte de alguns advogados e peritos trabalhistas. Lembra mais aquele pessoal que fica nas redes sociais julgando as falas ou os discursos dos outros com acusações de “falas isso” e discurso aquilo”, como se a falácia fosse verdadeira quando parte deles para os outros. Basta inverter essa narrativa que a falácia aparece. Quem acusa o outro de misoginia, por exemplo, também pode ser acusado de misandria. No entanto, a prática de eisegese e falácias se tornou comum nos meios jurídicos. Por isso que defendo tanto o ensino do Método Científico (MC) nas graduações de direito. Em lugar da chamada “ciências jurídicas”, que de ciência não tem nada, deveriam colocar o MC. De advogados a ministros do STF, o analfabetismo científico reina nos tribunais. O Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 664335 é um bom exemplo disso. Apenas exposições a níveis de ruído acima de 120 dB é que podem descaracterizar o protetor auditivo em função da propagação do ruído também por via óssea (principalmente do crânio). Isso porque a parcela de ruído transmitida por via óssea e tecidos é cerca de 40 a 50 dB menor que o ruído transmitido por via aérea, sendo praticamente desprezível em ambientes em que o nível de ruído seja inferior a 120 dB. Anular completamente a eficácia do EPI alegando propagação do ruído também por via óssea, sem estabelecer um limite de ruído aceitável, foi mais um exemplo de analfabetismo científico judiciário. Ao que tudo indica o assessor não soube explicar direito a função “Propagação do ruído por via óssea X Níveis de ruído ambiente”. Não bastasse as leis ideológicas, temos mais uma lei que pisa a ciência e a razão.

Mas calma que piora: temos eisegetas bagunçando a Segurança e Saúde Ocupacional, como é o caso das adulterações dos termos utilizados pela legislação de SST.

Vamos analisar alguns termos com base nas NR, definições técnicas e o dicionário Michaelis:

Manuseio X Manipulação

Manusear e manipular produtos químicos não são sinônimos. E em SST há uma diferença enorme.

Manusear: Mexer ou mover algo com as mãos; manejar;

Manipular: Preparar, dar forma, tocar, segurar ou transportar com as mãos.

Percebemos que manusear é algo mais generalizado e manipular exige destreza e habilidade. Em se tratando de produtos químicos, objeto do Anexo 13 da NR-15, temos a definição da NR-20:

Manuseio – atividade de movimentação de inflamáveis contidos em recipientes, tanques portáteis, tambores, bombonas, vasilhames, caixas, latas, frascos e similares. Ato de manusear o produto envasado, embalado ou lacrado.

Como em “Fabricação e manuseio de álcalis cáusticos” (Anexo 13 NR-15).

Manipulação – ato ou efeito de manipular. Preparação ou operação manual com inflamáveis, com finalidade de misturar ou fracionar os produtos. Considera-se que há manipulação quando ocorre o contato direto do produto com o ambiente.

Como em “Manipulação de alcatrão, breu, betume, antraceno, óleos minerais, óleo queimado, parafina ou outras substâncias cancerígenas afins” (Anexo 13 NR-15).

Concluímos que manusear se aplica a movimentação sem contato direto com o produto e manipular se aplica as operações de virar, emborcar, entornar, derramar, misturar, mexer, etc

Esses termos são comumente interpretados de forma contrária ao real sentido, conforme interesse da parte, ora para majorar, ora para minorar a exposição.  

Fabricação X Emprego

Fabricação e emprego de produtos químicos também não são sinônimos. Fabricação compreende a ação, processo ou arte de fabricar algo por meio de transformação, montagem, mistura ou composição.

Como em “Fabricação de artigos de borracha, de produtos para impermeabilização e de tecidos impermeáveis à base de hidrocarbonetos” (Anexo 13 NR-15).

Emprego compreende a aplicação ou o uso.

Como em “Emprego de produtos contendo hidrocarbonetos aromáticos como solventes ou em limpeza de peças” (Anexo 13 NR-15).  

Chamar o texto legal aplicado a fabricação como se fosse emprego e vice-versa também se tornou uma prática comum em perícias trabalhistas.

Atividades X Operações

Atividades e operações com exposição a agentes nocivos são termos que se complementam, mas também não são sinônimos.  A atividade compreende o conjunto de tarefas realizadas pelo trabalhador durante a jornada de trabalho, inclusive, operações.

Como em “Atividades permanentes de superfícies nas operações a seco, com britadores, peneiras, classificadores, carga e descarga de silos, de transportadores de correia e de teleférreos” (Anexo 13 NR-15). 

Operação é o ato ou efeito de operar. É a realização de uma tarefa especializada.

Como em “1. Relação das atividades e operações envolvendo agentes químicos, consideradas, insalubres em decorrência de inspeção realizada no local de trabalho” (Anexo 13 NR-15). 

A desconstrução do sentido real destes termos pelas partes também ocorre com frequência. Quando se quer majorar a exposição, aplicam “atividade”, como sendo única tarefa com exposição a riscos realizada durante toda a jornada de trabalho; quando se quer minorar a exposição, aplicam “operação”, como sendo uma única tarefa com exposição a riscos realizada em um curto espaço de tempo durante a jornada de trabalho,  

Descartável X Sem manutenção

Em se tratando de EPI, há uma diferença enorme entre descartável e sem manutenção. Descartável é algo que não tem durabilidade e o que se deve descartar depois de utilizado. Geralmente se usa apenas uma vez.

Exemplo: respiradores descartáveis, luvas cirúrgicas, protetores de calçados, etc

Sem manutenção é algo que se usa até vencer e depois descarta porque não tem manutenção. No caso de respiradores são aqueles de tecido, que são utilizados vencerem. O filtro do respirador sem manutenção vence quando suja, umedece, ocorre o fenômeno máscara esquentando ou há percepção do odor do contaminante por parte do usuário. Isso considerando o uso correto, claro.

Exemplo: respiradores sem manutenção, luvas, etc

Outra forma de ludibriar o entendimento do magistrado com o objetivo de descaracterizar o uso contínuo do EPI, fazendo com que um EPI sem manutenção seja confundido com um EPI descartável. Essa manobra eisegética faz com que o magistrado desconsidere o EPI eficaz com base na errônea interrupção ou descontinuidade do fornecimento do EPI. Aqui temos algumas considerações:

a) Se a tarefa com o risco ao qual se aplica o EPI não é a única realizada durante a jornada de trabalho, não é realizada todos os dias, nem de forma contínua, como também não é um risco ambiental, não tem porque fornecer o EPI todos os dias. O EPI deve ser fornecido apenas quando houver a exposição ao agente nocivo;

b) Se o EPI não é descartável, pode ser utilizado várias vezes até vencer o fator de segurança, não sendo necessário aparecer na ficha de EPI o registro do fornecimento diário.

Permanente X Intermitente

Exposição permanente é quando durante toda a jornada de trabalho, em todas as tarefas componentes, há exposição ao agente nocivo considerado.

Exemplo: Operador de Empilhadeira, cuja atividade é a operação (e também a única tarefa componente da atividade).

Intermitente é quando a exposição não ocorre em todas as tarefas componentes da atividade.

Exemplo:

Aux. Almoxarifado que passa cerca de duas horas/dia operando a empilhadeira para armazenar e organizar os produtos no depósito e depois realiza atividades de expedição, registro e elaboração de relatório – Atividade permanente com exposição por duas horas/dia;

Aux. Almoxarifado que passa cerca de duas horas/semanais operando a empilhadeira para armazenar e organizar os produtos no depósito de forma concomitante com as atividades de expedição, registro e elaboração de relatório – Atividade permanente com exposição por duas horas/dia – Atividade intermitente.

É preciso descrever minuciosamente a atividade, contendo toldas as tarefas componentes e com os tempos de realização de cada tarefa. Somente com base no tempo demandado para realizar a tarefa com exposição ao risco reclamado nos autos é que é possível estimar a exposição, nocividade e eficácia do EPI.

Princípio ativo X Concentração

Em SST, princípio ativo de um agente nocivo qualquer é o agente causador da doença ocupacional. Não somente agentes químicos, mas também físicos e biológicos são possuidores de princípios ativos ou fatores de risco. São princípios ativos o ruído audível, dentre os não audíveis, radiações não ionizantes, dentre o feixe contendo a faixa da luz negra, as bactérias, dentre a cultura orgânica etc Agentes Mecânicos/De acidentes e Ergonômicos/Psicossociais não possuem princípio ativo, mas são denominados apenas de fatores de risco. Quando citamos fator de risco ruído gerado pelo perigo máquina de corte estamos nos referindo a faixa de frequência audível (20Hz a 20KHz), medidos em dB(A) Slow e intensidade superior a 85 dB(A). Esse é o princípio ativo.

Para analisar a exposição a produtos químicos é preciso saber a composição dos mesmos. Os solventes prejudiciais à saúde, por exemplo, são os que contém em sua composição os hidrocarbonetos aromáticos, em especial tolueno e xileno. Mas há os solventes não aromáticos que não possuem o princípio ativo. Se o produto ou solução não contém o princípio ativo ou contém em concentrações insignificantes, não há nocividade.  

A concentração das soluções corresponde a quantidade de soluto presente em uma determinada quantidade de solvente.

Quando nos referimos à concentração, estamos nos referindo a relação entre a quantidade de soluto e solvente em uma solução. Existem diversas formas de calcular a concentração de uma solução e diferentes unidades de medidas podem ser utilizadas. A Concentração é expressa através da seguinte fórmula:

C = m / V

Onde:

C = concentração comum, em g/L

m = massa do soluto, em g

V = volume da solução, em L

Concentração é a quantidade do princípio ativo em relação ao volume total da solução considerada. Exposições a agentes químicos são prejudiciais quando há na composição o princípio ativo em concentração suficiente para causar danos à saúde do trabalhador. Uma substância contendo benzeno na concentração de 0,001%  não causa danos à saúde do trabalhador. O Anexo 13-A da NR-15 considera nociva a concentração acima de 1%.

Exposições de frentistas em postos de combustíveis não estão contempladas no Anexo 13 da NR-15:

2.1. O presente Anexo não se aplica às atividades de armazenamento, transporte, distribuição, venda e uso de combustíveis derivados de petróleo”.

Isso porque a gasolina possui menos de 1% de benzeno em sua composição:

A porcentagem (partes por cem) de uma substância em uma solução pode ser expressa como porcentagem em peso. O uso de p/p serve para informar que a razão nesta unidade de concentração é peso/peso.

Por exemplo: uma solução de benzeno a 1% (p/p) em gasolina contém 1g de benzeno em 100g (NÃO mL) da solução, e se prepara misturando 1g de benzeno com 99g de gasolina.

As FISPQ da gasolina não trazem o percentual exato da concentração de benzeno, mas sabemos que pode conter até 0,90% (p/p). E como se trata de um produto comprovadamente cancerígeno, não é permitida nenhuma exposição do trabalhador. Daí a necessidade de medidas preventivas eficazes, como sistema de recuperação de vapores. Lembrando que nesse caso o sistema só pode ser considerado eficaz se realizadas várias medições ambientais ao nível respiratório dos frentistas, com todos os resultados negativos para o agente nocivo. Também no rastreamento biológico não pode conter registros de indicadores biológicos específicos do benzeno, como alterações nas plaquetas e reticulócitos. Portanto, não é só dizer que tem o sistema, os trabalhadores usam luvas, respiradores…

A dica é: se não contém o princípio ativo não há nocividade. E no caso dos não cancerígenos, se a concentração for insignificante, também não há nocividade.

Exposição pontual X Exposição real

Exposição pontual é aquela medida pontualmente durante a realização de uma das tarefas componentes da atividade.

Exposição real é a dose do agente nocivo a que o trabalhador está exposto durante a jornada de trabalho.

Medir o nível de ruído de um pedreiro cortando um bloco de concreto, por exemplo, e colocar como se fosse a exposição diária ao ruído não é uma coisa honesta a se fazer, exceto, se o pedreiro apenas tem essa atividade durante a jornada de trabalho. Se o trabalhador possui várias tarefas durante o dia (com e sem exposição ao agente nocivo), deve-se realizar a dosimetria durante a jornada de trabalho (com o sem ruído). Essa é a exposição real do trabalhador. Medições pontuais não são aceitas nem pela legislação trabalhista e nem pela legislação previdenciária. Dosimetrias projetadas de amostragens de exposições de uma única tarefa podem ser aceitas apenas se a atividade do trabalhador consistir apenas em realizar apenas essa tarefa.  Se a atividade for composta por três tarefas durante o dia, por exemplo, o ideal seria realizar a dosimetria da jornada de trabalho. Mas é possível projetar a dose por amostragem, considerando a exposição nas três tarefas. Eu sugiro (não é lei) que as dosimetrias a serem projetadas para a jornada de trabalho compreendam no mínimo cinquenta por cento do tempo de exposição em cada tarefa e completem todo o ciclo de trabalho de cada tarefa.

Em perícias trabalhistas, onde apenas profissionais especializados atuam, mudar o sentido ou interpretar termos de modo a passar uma ideia diversa do que realmente significam é no mínimo desonestidade intelectual. E alguns usam desse artificio na tentativa de fazer com que sua intepretação errônea concorde com seu interesse no resultado da perícia. Ou interpretam de forma errada ou ignoram o real significado do termo.

Finalizando, eisegese é uma coisa feia. Não façam isso. Além de insultar a inteligência do Assistente Técnico Pericial, causa insegurança jurídica, lesa a empresa e gera jurisprudência injusta.

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